O melhor da festa

Marcelo Sguassábia (*)

É esperar por ela. Assim o velho ditado, assim Priscila deitada. Olha pela janela grande do quarto e vê um cinza chumbo empurrando no céu o carneiro de nuvens. Não demora e a chuva vai regar as bostas das vacas lá no morro, que gratas pelo frescor retribuirão com cogumelos a quem quiser colher, chapéus de sol que dariam cores e sons insuspeitos à festa de logo mais. Isso se Priscila fosse de se alucinar. Qualquer uma menos ela, aluna de internato, sem chance, nem vinho de missa conhecia. A uma mulher dessas bastaria uma taça de espumante leve para destravar um vagão de cismas e mágoas. No caso dela a lucidez já era, a seco, a perda do juízo e o delírio extremo. Estava há meses a 220, trêmula. Mas a festa daria jeito nisso. A festa prometia e ela acreditava.

Busca Priscila a si mesma na cama. Não acha. Já tentou o Google? O que o Google não acha, não existe. Se o Google não achou Deus, Deus inexiste. Google talvez seja Deus, sendo Deus uma busca como muitos dizem. Se julga Priscila um mosaico de desenho incerto, definido a esmo, sem traçado prévio. Ao resto do mundo o merecido estrago, todas as maldições juntas do Antigo Testamento. Que a ira divina varresse tudo, poupando apenas deleites pequenos mas insubstituíveis, como tentar adivinhar o que teria de almoço ou espreguiçar em fronhas frescas pra espantar o mormaço.

Cadê os headphones? Ouvir música até perder-se em meditação profunda, talvez aquele movimento mais lento da Pastoral, iria bem hoje como nunca enquanto a hora não chega.

O que passou não volta por nada e será sempre muito melhor do que o que é. Sua mecha de cabelo adolescente, guardado no porta-jóias, será infinitamente mais sedosa e interessante que esse grisalho que chega dizendo que veio de vez, para o resto da vida. Mas deixa ele vir, nunca será um susto tão grande quanto o daquele dia em que teu pai, Priscila, te pegou fumando no quintal, lembra? Fumando pela curiosidade, não pelo vício ou por achar charmoso. Um cigarro é um corpo estranho no canto da tua boca sem malícia.

Ela ouve a água passar pelo latão da calha, misturada com a música do Roberto Carlos tocando no vizinho. Ele também vai à festa. Todos vão à festa. No quarto o cheiro de pastilha de eucalipto insiste. Gripe mal curada, quer estar inteira para logo mais.

O que sente agora, partindo do estômago até a lua mais próxima, é como um cordão de prata e néon azul, que Ludmila chamaria de perispírito. Agora é o exato instante em que o mormaço é vencido pela aragem do morro, que sem querer acabou trazendo o cardápio do almoço, agora não mais surpresa: omelete acebolado. Mas comerá só um pouco. À noite tem a festa.

(*) Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

Fonte: Comunique-se

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